Livia Lopes: “prevenção transcende o âmbito individual e requer uma discussão mais ampla e social”
Quando Lívia Lopes sentiu um pequeno nódulo na axila, do tamanho de um grão de arroz, a possibilidade de câncer não lhe passou pela cabeça. Em 2014, a estudante tinha apenas 23 anos e estava finalizando sua graduação em arquitetura.
Sem histórico da doença em sua família, até sua ginecologista acreditou que não se tratava de nada sério. Foi só depois de um ano, quando o nódulo já tinha crescido consideravelmente, que Lívia foi encaminhada à mastologia. A biópsia confirmou: o tumor era maligno.
A experiência de Lívia não é mais tão incomum quanto costumava ser. Nos últimos dois anos, a incidência de câncer de mama em mulheres com até 35 anos mais do que dobrou, segundo a Sociedade Brasileira de Mastologia (SBM). Antes, estes casos representavam 2% do total; agora são 5%.
Em entrevista ao MAMA MAG, Lívia relata a solidão que sentiu durante o tratamento, por não ter outras pacientes da sua idade, e como esta página da sua vida levou-a a conhecer outras pacientes e ser voluntária na causa.
Mulheres que erguem umas às outras
“Eu não fazia ideia de que poderia ter aquela doença, naquela idade”, conta Lívia. Filha única, a estudante estava com a mãe no consultório médico quando recebeu o seu diagnóstico.
“Lembro direitinho na consulta médica, no momento em que saiu o resultado da biópsia e a médica já queria agendar a cirurgia. E eu dizendo: ‘não, essa data é ruim, é perto da apresentação do meu trabalho de conclusão. E ela respondeu: “você não está entendendo, é uma urgência. Nada na sua vida vai entrar na frente disso’”.
Mesmo agressivo, o seu câncer teve várias possibilidades de tratamento. Na ocasião, ela também optou por congelar óvulos, uma estratégia para preservar a fertilidade da paciente que está passando pelo tratamento. O procedimento era considerado um pouco arriscado, já que Lívia precisaria passar por um ciclo de hormônios antes de poder retirar os óvulos.
“Naquele momento, eu estava no turbilhão da descoberta do câncer e ainda precisava decidir se gostaria de coletar ou não, sem saber se iria me arrepender caso não o fizesse.”
Ainda no dia do diagnóstico, saindo do hospital atordoada pela notícia, Lívia foi apresentada a uma pessoa que foi fundamental durante seu processo de tratamento, tornando-se uma amiga de jornada. Paula Joelsons tinha descoberto o seu câncer de mama aos 26 anos e já estava na reta final do tratamento. A fisioterapeuta Alessandra Tessaro promoveu o encontro entre elas, já que era tão incomum ter pacientes tão jovens.
“Ela foi me visitar quando fiz minha cirurgia. Era alguém que eu mal conhecia, mas super me deu um apoio. Acho que por entender que é um momento muito solitário. Muitas de nós, como eu, tem apoio da família e dos amigos, mas se sente sozinha por ser a única pessoa jovem que conhece nesse contexto. Ainda mais com o câncer de mama, algo que mexe com uma questão muito delicada, feminina”.
Além de suporte, Paula também lhe apresentou o Instituto Camaleão, uma associação sem fins lucrativos criada há pouco, em 2014, que busca dar apoio às pessoas com câncer, além de seus familiares e cuidadores. Foi assim que Lívia foi convidada para participar da primeira edição de um evento da instituição.
Juntas, Lívia e Paula também acolheram outra paciente que enfrentava o câncer de mama. Cruzaram o caminho de Cláudia Schilling, que teve sua vida virada de cabeça para baixo quando descobriu, aos 32 anos, um tumor agressivo e diversas metástases. Nesse momento de grande adversidade, as três amigas não apenas compartilharam lágrimas, mas também se abraçaram ainda mais firmemente, formando um elo de apoio mútuo.
Depois de um longo e doloroso processo, Cláudia partiu em 2017. A memória de uma pessoa alegre, que “viveu várias vidas em uma”, como compartilha Lívia, inspirou-a a fazer mais por outras mulheres que enfrentam a mesma batalha contra a doença. Em 2018, a arquiteta embarcou em uma jornada de voluntariado no Egito, onde se dedicou a um hospital filantrópico especializado em cuidar das pacientes com câncer de mama.
Ela compartilha que teve a oportunidade de se aproximar de outras voluntárias, conhecer algumas pacientes e mergulhar na cultura local. Lívia percebeu que havia um tabu arraigado em relação à doença.
“Existe uma questão da religião e da cultura que lá é muito forte, principalmente para as mulheres. Por tabu, alguns maridos não querem que as esposas busquem tratamento.”
Sua experiência no Egito a levou a desenvolver uma compreensão mais ampla da vida das mulheres naquele contexto cultural e religioso.
"Eu tinha meus próprios preconceitos antes de ir. Mas, ao voltar de lá, eu tinha um conhecimento completamente diferente, uma compreensão mais profunda e uma empatia genuína pelas mulheres, especialmente aquelas que escolhem usar o véu, o hijab. Eu costumava ter essa visão ocidental de que cobrir o cabelo estava diretamente relacionado à religião, mas aprendi que havia muito mais por trás disso. Conheci mulheres jovens que escolheram usar o véu e eram incrivelmente feministas, assim como outras que optaram por não usá-lo e também eram feministas. Isso me fez perceber que não se tratava de mulheres oprimidas, mas de uma questão de escolhas e identidades."
Dar voz e vez às histórias
Vivendo em Israel, Paula conheceu o trabalho do escritor Oren Fischer. Originalmente escrito em hebraico, o livro “A História de Ahuva”, em tradução livre, foi um presente para sua grande amiga que enfrentava corajosamente o câncer de mama. Ahuva é um apelido carinhoso que, em hebraico, significa “amada”.
O livro desafia um tabu em nossa sociedade: o câncer de mama metastático. Dá voz e vez às histórias das pacientes que não sobreviveram.
“Todo mundo fala que a paciente é uma guerreira, como se nós tivéssemos outra opção. Ninguém quer falar de quem partiu. É óbvio que é triste e ninguém gostaria de perder alguém, como aconteceu quando a Cláudia partiu. Mas não deixa de ser bonito e significativo a história de alguém que enfrentou o câncer, mas não está mais aqui”.
Em 2021, Paula trouxe para o Brasil um exemplar do livro na bagagem. Com Lívia, começou a idealizar o projeto de tradução. Hoje, elas buscam formas de financiar a produção e impressão de mil exemplares do livro. Uma parte significativa dessa tiragem será distribuída gratuitamente a hospitais e organizações que combatem o câncer, proporcionando apoio e inspiração a quem enfrenta essa jornada desafiadora. Além disso, uma versão digital acessível será disponibilizada online, ampliando o alcance.
Prevenção também é uma questão social
A rotina agitada dos semestres finais da faculdade não abria espaço para os cuidados com a alimentação, atividades físicas e a saúde mental. Foi após o seu diagnóstico que Lívia passou a olhar com atenção para essas questões:
“De imediato eu repensei muito a alimentação, porque era uma coisa que eu nunca tinha cuidado. Até o câncer, eu era uma pessoa que se alimentava muito mal. Comecei a comprar orgânico, parei de comer alguns alimentos, diminui muito o consumo de açúcar, passei a preparar minhas refeições e comecei um acompanhamento com a nutricionista com foco em pacientes oncológicos”.
No que diz respeito à atividade física, Lívia passou a praticar pilates, uma atividade que oferecia alguma força e conforto, uma vez que a saúde estava fragilizada naquele momento.
Seu tratamento também foi um momento que a fez refletir sobre os impactos do câncer de mama não só no aspecto individual. A prevenção vai além da detecção precoce; envolve também nosso estilo de vida, nossos pensamentos e a forma como estruturamos nossa vida profissional e relacionamentos. Tudo isso desempenha um papel fundamental na qualidade de vida.
“Essa é uma questão que transcende o âmbito individual e requer uma discussão mais ampla e social. É preocupante perceber que muitas mulheres vivem com o risco de câncer de mama, sem terem acesso a cirurgias, a médicos de qualidade, e até mesmo à prática de esportes e ao lazer. É importante que a gente discuta essas coisas e fale sobre saúde mental, trabalho de qualidade e redução de estresse e alimentação saudável. Isso merece atenção e ação imediata."
MAMA MAG é uma iniciativa do MAMA. Semanalmente, publicamos entrevistas e reportagens sobre assuntos que conectam arte, cultura, tecnologia, saúde e bem-estar.
Acompanhe nossa CURAdoria:
Livia Lopes: “prevenção transcende o âmbito individual e requer uma discussão mais ampla e social”
Quando Lívia Lopes sentiu um pequeno nódulo na axila, do tamanho de um grão de arroz, a possibilidade de câncer não lhe passou pela cabeça. Em 2014, a estudante tinha apenas 23 anos e estava finalizando sua graduação em arquitetura.
Sem histórico da doença em sua família, até sua ginecologista acreditou que não se tratava de nada sério. Foi só depois de um ano, quando o nódulo já tinha crescido consideravelmente, que Lívia foi encaminhada à mastologia. A biópsia confirmou: o tumor era maligno.
A experiência de Lívia não é mais tão incomum quanto costumava ser. Nos últimos dois anos, a incidência de câncer de mama em mulheres com até 35 anos mais do que dobrou, segundo a Sociedade Brasileira de Mastologia (SBM). Antes, estes casos representavam 2% do total; agora são 5%.
Em entrevista ao MAMA MAG, Lívia relata a solidão que sentiu durante o tratamento, por não ter outras pacientes da sua idade, e como esta página da sua vida levou-a a conhecer outras pacientes e ser voluntária na causa.
Mulheres que erguem umas às outras
“Eu não fazia ideia de que poderia ter aquela doença, naquela idade”, conta Lívia. Filha única, a estudante estava com a mãe no consultório médico quando recebeu o seu diagnóstico.
“Lembro direitinho na consulta médica, no momento em que saiu o resultado da biópsia e a médica já queria agendar a cirurgia. E eu dizendo: ‘não, essa data é ruim, é perto da apresentação do meu trabalho de conclusão. E ela respondeu: “você não está entendendo, é uma urgência. Nada na sua vida vai entrar na frente disso’”.
Mesmo agressivo, o seu câncer teve várias possibilidades de tratamento. Na ocasião, ela também optou por congelar óvulos, uma estratégia para preservar a fertilidade da paciente que está passando pelo tratamento. O procedimento era considerado um pouco arriscado, já que Lívia precisaria passar por um ciclo de hormônios antes de poder retirar os óvulos.
“Naquele momento, eu estava no turbilhão da descoberta do câncer e ainda precisava decidir se gostaria de coletar ou não, sem saber se iria me arrepender caso não o fizesse.”
Ainda no dia do diagnóstico, saindo do hospital atordoada pela notícia, Lívia foi apresentada a uma pessoa que foi fundamental durante seu processo de tratamento, tornando-se uma amiga de jornada. Paula Joelsons tinha descoberto o seu câncer de mama aos 26 anos e já estava na reta final do tratamento. A fisioterapeuta Alessandra Tessaro promoveu o encontro entre elas, já que era tão incomum ter pacientes tão jovens.
“Ela foi me visitar quando fiz minha cirurgia. Era alguém que eu mal conhecia, mas super me deu um apoio. Acho que por entender que é um momento muito solitário. Muitas de nós, como eu, tem apoio da família e dos amigos, mas se sente sozinha por ser a única pessoa jovem que conhece nesse contexto. Ainda mais com o câncer de mama, algo que mexe com uma questão muito delicada, feminina”.
Além de suporte, Paula também lhe apresentou o Instituto Camaleão, uma associação sem fins lucrativos criada há pouco, em 2014, que busca dar apoio às pessoas com câncer, além de seus familiares e cuidadores. Foi assim que Lívia foi convidada para participar da primeira edição de um evento da instituição.
Juntas, Lívia e Paula também acolheram outra paciente que enfrentava o câncer de mama. Cruzaram o caminho de Cláudia Schilling, que teve sua vida virada de cabeça para baixo quando descobriu, aos 32 anos, um tumor agressivo e diversas metástases. Nesse momento de grande adversidade, as três amigas não apenas compartilharam lágrimas, mas também se abraçaram ainda mais firmemente, formando um elo de apoio mútuo.
Depois de um longo e doloroso processo, Cláudia partiu em 2017. A memória de uma pessoa alegre, que “viveu várias vidas em uma”, como compartilha Lívia, inspirou-a a fazer mais por outras mulheres que enfrentam a mesma batalha contra a doença. Em 2018, a arquiteta embarcou em uma jornada de voluntariado no Egito, onde se dedicou a um hospital filantrópico especializado em cuidar das pacientes com câncer de mama.
Ela compartilha que teve a oportunidade de se aproximar de outras voluntárias, conhecer algumas pacientes e mergulhar na cultura local. Lívia percebeu que havia um tabu arraigado em relação à doença.
“Existe uma questão da religião e da cultura que lá é muito forte, principalmente para as mulheres. Por tabu, alguns maridos não querem que as esposas busquem tratamento.”
Sua experiência no Egito a levou a desenvolver uma compreensão mais ampla da vida das mulheres naquele contexto cultural e religioso.
"Eu tinha meus próprios preconceitos antes de ir. Mas, ao voltar de lá, eu tinha um conhecimento completamente diferente, uma compreensão mais profunda e uma empatia genuína pelas mulheres, especialmente aquelas que escolhem usar o véu, o hijab. Eu costumava ter essa visão ocidental de que cobrir o cabelo estava diretamente relacionado à religião, mas aprendi que havia muito mais por trás disso. Conheci mulheres jovens que escolheram usar o véu e eram incrivelmente feministas, assim como outras que optaram por não usá-lo e também eram feministas. Isso me fez perceber que não se tratava de mulheres oprimidas, mas de uma questão de escolhas e identidades."
Dar voz e vez às histórias
Vivendo em Israel, Paula conheceu o trabalho do escritor Oren Fischer. Originalmente escrito em hebraico, o livro “A História de Ahuva”, em tradução livre, foi um presente para sua grande amiga que enfrentava corajosamente o câncer de mama. Ahuva é um apelido carinhoso que, em hebraico, significa “amada”.
O livro desafia um tabu em nossa sociedade: o câncer de mama metastático. Dá voz e vez às histórias das pacientes que não sobreviveram.
“Todo mundo fala que a paciente é uma guerreira, como se nós tivéssemos outra opção. Ninguém quer falar de quem partiu. É óbvio que é triste e ninguém gostaria de perder alguém, como aconteceu quando a Cláudia partiu. Mas não deixa de ser bonito e significativo a história de alguém que enfrentou o câncer, mas não está mais aqui”.
Em 2021, Paula trouxe para o Brasil um exemplar do livro na bagagem. Com Lívia, começou a idealizar o projeto de tradução. Hoje, elas buscam formas de financiar a produção e impressão de mil exemplares do livro. Uma parte significativa dessa tiragem será distribuída gratuitamente a hospitais e organizações que combatem o câncer, proporcionando apoio e inspiração a quem enfrenta essa jornada desafiadora. Além disso, uma versão digital acessível será disponibilizada online, ampliando o alcance.
Prevenção também é uma questão social
A rotina agitada dos semestres finais da faculdade não abria espaço para os cuidados com a alimentação, atividades físicas e a saúde mental. Foi após o seu diagnóstico que Lívia passou a olhar com atenção para essas questões:
“De imediato eu repensei muito a alimentação, porque era uma coisa que eu nunca tinha cuidado. Até o câncer, eu era uma pessoa que se alimentava muito mal. Comecei a comprar orgânico, parei de comer alguns alimentos, diminui muito o consumo de açúcar, passei a preparar minhas refeições e comecei um acompanhamento com a nutricionista com foco em pacientes oncológicos”.
No que diz respeito à atividade física, Lívia passou a praticar pilates, uma atividade que oferecia alguma força e conforto, uma vez que a saúde estava fragilizada naquele momento.
Seu tratamento também foi um momento que a fez refletir sobre os impactos do câncer de mama não só no aspecto individual. A prevenção vai além da detecção precoce; envolve também nosso estilo de vida, nossos pensamentos e a forma como estruturamos nossa vida profissional e relacionamentos. Tudo isso desempenha um papel fundamental na qualidade de vida.
“Essa é uma questão que transcende o âmbito individual e requer uma discussão mais ampla e social. É preocupante perceber que muitas mulheres vivem com o risco de câncer de mama, sem terem acesso a cirurgias, a médicos de qualidade, e até mesmo à prática de esportes e ao lazer. É importante que a gente discuta essas coisas e fale sobre saúde mental, trabalho de qualidade e redução de estresse e alimentação saudável. Isso merece atenção e ação imediata."
MAMA MAG é uma iniciativa do MAMA. Semanalmente, publicamos entrevistas e reportagens sobre assuntos que conectam arte, cultura, tecnologia, saúde e bem-estar.
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