A arte de Élle de Bernardini: uma reflexão sobre as exigências impostas aos corpos e como lidamos com elas
“Gosto de pensar que frustrações e limitações me levaram a ser artista”, define Élle de Bernardini. A convite do MAMA, a artista fala sobre sua trajetória, como sua poética se conecta com o tema “mulher” e sobre a arte como ferramenta para a transformação social.
Antes de chegar às artes plásticas, foi no ballet clássico que se expressou e, também, colidiu com os entraves de gênero. Por ser mulher trans, foi impedida de avançar para os cargos de solista, segunda ou primeira bailarina. Permaneceria sempre no corpo de baile, pois assim estaria “disfarçada”. Mesmo no Royal Ballet de Londres, onde foi a primeira bailarina trans mulher aceita na classe feminina, não pode nutrir perspectivas de crescimento.
Ao conhecer o trabalho dos bailarinos de Butoh japoneses, Tadashi Endo e Yoshito Ohno, encontrou um espaço onde o corpo era entendido além do gênero e das identidades. Ao estudar com os mestres, começou a fazer performances que, aos poucos, foram se tornando instalações performáticas, depois somente instalações.
“Aos poucos fui me interessando por cruzar os temas da violência e da história com as questões de gênero e história da sexualidade e encontrar suportes para expressar as ideias. E assim as obras foram e continuam surgindo, de uma maneira muito orgânica, mas ainda assim encadeada em um fio condutor que perpassa tudo desde o começo.”
A arte inspira a mudança, a mudança inspira a arte
A arte não precisa ter finalidade, porque a sua existência já é um sentido – repleto de sentir. Como nos diz Élle, a arte é um veículo de transformação social quando o artista deseja e trabalha para que suas obras abordem os temas e encontrem as metodologias de fazer a transformação acontecer. “Meu trabalho não precisa obrigatoriamente ter uma utilidade, e caso eu queira que ele tenha, sua utilidade será para fazer pensar, sentir, sensibilizar-se”, ressalta.
Nesse sentido, a arte pode ser uma ferramenta poderosa de divulgação, de abrir espaços para o diálogo e trocas de informações, e de sensibilizar em geral os sujeitos para aquilo que ela aponta sua atenção no mundo.
Élle coloca seu sentir, seu pensar e as suas mãos em ação em uma parceria com o MAMA, fortalecendo as culturas de prevenção.
“Como artista trans eu sinto que meu papel é estar aliada às pessoas trans que menstruam e que possuem mamas, e que estão mais sujeitas ao câncer de mama do que homens cis, que também podem ter a doença. Acho que como uma mulher trans, posso contribuir para que pessoas trans, homens trans se sintam acolhidos na campanha”.
A realidade do câncer de mama não é nova em sua vida. Na década de 80, quando a doença ainda carregava fortemente o peso de ser uma sentença de morte, a avó de Élle recebeu o diagnóstico e, também, a desesperança.
Teve uma das mamas removidas e, contrariando as expectativas, sobreviveu. Passou toda sua vida com um seio apenas, sem o interesse de colocar uma prótese.
“O fato de ter um seio nunca foi uma questão para ela, nunca foi um ponto que pudesse abalar sua autoestima, ela viveu como se nada tivesse acontecido. E este modo dela de encarar a vida, a sua doença, as marcas que ela deixou, e principalmente as sequelas que refletem, no caso deste câncer em particular, em uma parte do corpo que é socialmente considerada feminina e determinante do que é ser mulher, é libertador. E foi inspirador para mim ao ponto de minha avó e o câncer dela ser sempre um exemplo que utilizo quando explico sobre meu trabalho e as exigências sociais impostas aos corpos e como os sujeitos lidam com elas. Minha avó burlou a normalidade, mostrou que essa exigência social não recairia sobre ela, e até sua morte aos 82 anos foi considerada por todos uma mulher bonita e elegante”.
Uma poética além-gênero
Em suas pesquisas e no seu trabalho, Élle examina a história da humanidade a partir de um novo paradigma: um modelo de sociedade que nos permitiria sair da regra heteronormativa e adotar uma abordagem contrassexual, onde as diferenças binárias de gênero (homem e mulher) são destruídas.
Todas as pessoas são vistas como "corpos falantes com potencialidades", onde os corpos não são mais definidos apenas por pênis ou vagina, e onde os seios não são mais considerados exclusivamente femininos.
“Minha pesquisa busca entender justamente o que é necessário ter, para ser homem ou mulher, e se o processo de identidade do sujeito é necessariamente dependente da generificação de seus corpos e imagens”.
Em sua pesquisa atual, a artista tensiona o que é natural, dado pela natureza ou no nascimento, relacionando o sexo também é uma construção social, datada, localizada na história e que possuí uma história que precisa ser melhor contada.
Essa questão está no cerne de uma exposição individual na Galeria Portas Vilaseca, no Rio de Janeiro, que ocorrerá em setembro. O trabalho conta com a ajuda e pesquisa paralela da curadora Horrana Santoz.
Os horizontes de Élle
A agenda fechada nos próximos anos é um reflexo da relevância de Élle para o cenário artístico, não só nacional. Quando perguntada sobre seus passos, ela é prática ao dizer “sou uma artista nada romântica, que vê o trabalho de artista como outro qualquer. Eu vou fazendo os trabalhos e projetos que desejo, e as coisas vão acontecendo e eu vou atendendo as demandas conforme elas vão chegando”.
E é neste fluxo que a sua arte se manifesta. Para o futuro, o seu desejo é simples, mas muito potente: “seguir produzindo, tendo condições dignas de trabalho, e ser respeitada”, encerra a artista”.
MAMA MAG é uma iniciativa do MAMA. Semanalmente, publicamos entrevistas e reportagens sobre assuntos que conectam arte, cultura, tecnologia, saúde e bem-estar.
Acompanhe nossa CURAdoria:
A arte de Élle de Bernardini: uma reflexão sobre as exigências impostas aos corpos e como lidamos com elas
“Gosto de pensar que frustrações e limitações me levaram a ser artista”, define Élle de Bernardini. A convite do MAMA, a artista fala sobre sua trajetória, como sua poética se conecta com o tema “mulher” e sobre a arte como ferramenta para a transformação social.
Antes de chegar às artes plásticas, foi no ballet clássico que se expressou e, também, colidiu com os entraves de gênero. Por ser mulher trans, foi impedida de avançar para os cargos de solista, segunda ou primeira bailarina. Permaneceria sempre no corpo de baile, pois assim estaria “disfarçada”. Mesmo no Royal Ballet de Londres, onde foi a primeira bailarina trans mulher aceita na classe feminina, não pode nutrir perspectivas de crescimento.
Ao conhecer o trabalho dos bailarinos de Butoh japoneses, Tadashi Endo e Yoshito Ohno, encontrou um espaço onde o corpo era entendido além do gênero e das identidades. Ao estudar com os mestres, começou a fazer performances que, aos poucos, foram se tornando instalações performáticas, depois somente instalações.
“Aos poucos fui me interessando por cruzar os temas da violência e da história com as questões de gênero e história da sexualidade e encontrar suportes para expressar as ideias. E assim as obras foram e continuam surgindo, de uma maneira muito orgânica, mas ainda assim encadeada em um fio condutor que perpassa tudo desde o começo.”
A arte inspira a mudança, a mudança inspira a arte
A arte não precisa ter finalidade, porque a sua existência já é um sentido – repleto de sentir. Como nos diz Élle, a arte é um veículo de transformação social quando o artista deseja e trabalha para que suas obras abordem os temas e encontrem as metodologias de fazer a transformação acontecer. “Meu trabalho não precisa obrigatoriamente ter uma utilidade, e caso eu queira que ele tenha, sua utilidade será para fazer pensar, sentir, sensibilizar-se”, ressalta.
Nesse sentido, a arte pode ser uma ferramenta poderosa de divulgação, de abrir espaços para o diálogo e trocas de informações, e de sensibilizar em geral os sujeitos para aquilo que ela aponta sua atenção no mundo.
Élle coloca seu sentir, seu pensar e as suas mãos em ação em uma parceria com o MAMA, fortalecendo as culturas de prevenção.
“Como artista trans eu sinto que meu papel é estar aliada às pessoas trans que menstruam e que possuem mamas, e que estão mais sujeitas ao câncer de mama do que homens cis, que também podem ter a doença. Acho que como uma mulher trans, posso contribuir para que pessoas trans, homens trans se sintam acolhidos na campanha”.
A realidade do câncer de mama não é nova em sua vida. Na década de 80, quando a doença ainda carregava fortemente o peso de ser uma sentença de morte, a avó de Élle recebeu o diagnóstico e, também, a desesperança.
Teve uma das mamas removidas e, contrariando as expectativas, sobreviveu. Passou toda sua vida com um seio apenas, sem o interesse de colocar uma prótese.
“O fato de ter um seio nunca foi uma questão para ela, nunca foi um ponto que pudesse abalar sua autoestima, ela viveu como se nada tivesse acontecido. E este modo dela de encarar a vida, a sua doença, as marcas que ela deixou, e principalmente as sequelas que refletem, no caso deste câncer em particular, em uma parte do corpo que é socialmente considerada feminina e determinante do que é ser mulher, é libertador. E foi inspirador para mim ao ponto de minha avó e o câncer dela ser sempre um exemplo que utilizo quando explico sobre meu trabalho e as exigências sociais impostas aos corpos e como os sujeitos lidam com elas. Minha avó burlou a normalidade, mostrou que essa exigência social não recairia sobre ela, e até sua morte aos 82 anos foi considerada por todos uma mulher bonita e elegante”.
Uma poética além-gênero
Em suas pesquisas e no seu trabalho, Élle examina a história da humanidade a partir de um novo paradigma: um modelo de sociedade que nos permitiria sair da regra heteronormativa e adotar uma abordagem contrassexual, onde as diferenças binárias de gênero (homem e mulher) são destruídas.
Todas as pessoas são vistas como "corpos falantes com potencialidades", onde os corpos não são mais definidos apenas por pênis ou vagina, e onde os seios não são mais considerados exclusivamente femininos.
“Minha pesquisa busca entender justamente o que é necessário ter, para ser homem ou mulher, e se o processo de identidade do sujeito é necessariamente dependente da generificação de seus corpos e imagens”.
Em sua pesquisa atual, a artista tensiona o que é natural, dado pela natureza ou no nascimento, relacionando o sexo também é uma construção social, datada, localizada na história e que possuí uma história que precisa ser melhor contada.
Essa questão está no cerne de uma exposição individual na Galeria Portas Vilaseca, no Rio de Janeiro, que ocorrerá em setembro. O trabalho conta com a ajuda e pesquisa paralela da curadora Horrana Santoz.
Os horizontes de Élle
A agenda fechada nos próximos anos é um reflexo da relevância de Élle para o cenário artístico, não só nacional. Quando perguntada sobre seus passos, ela é prática ao dizer “sou uma artista nada romântica, que vê o trabalho de artista como outro qualquer. Eu vou fazendo os trabalhos e projetos que desejo, e as coisas vão acontecendo e eu vou atendendo as demandas conforme elas vão chegando”.
E é neste fluxo que a sua arte se manifesta. Para o futuro, o seu desejo é simples, mas muito potente: “seguir produzindo, tendo condições dignas de trabalho, e ser respeitada”, encerra a artista”.
MAMA MAG é uma iniciativa do MAMA. Semanalmente, publicamos entrevistas e reportagens sobre assuntos que conectam arte, cultura, tecnologia, saúde e bem-estar.
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